sábado, 4 de janeiro de 2025

MEMBRANA - O capítulo 1

       

        Não fosse a gravidade, os planetas estariam flutuando, dispersos, no espaço. O dia, a noite e as estações seriam momentos aleatórios e de duração indeterminada. A órbita de nosso planeta em torno do sol não existiria, e, soltos, poderíamos mesmo ir de encontro a ele. Ou nos distanciaríamos a ponto de a temperatura da Terra cair até não mais permitir a existência de vida.


        João estava no sofá da sala, assistindo na TV um documentário sobre astronomia. Sua paixão. Aos dezenove anos, era o rapaz fascinado pelo espaço, pelo desconhecido que tanto o intrigava quanto comovia.

A vontade de sumir e fugir, que ocasionalmente acomete os seres humanos, em João acontecia com frequência, todos os dias. E, na impossibilidade de uma fuga de verdade, ele se limitava a deixar aberta a porta de sua mente para que os pensamentos fossem embora. E eles iam todos para lá: atravessavam nuvens de gases luminosos, acompanhavam a trajetória de cometas que deixavam um rastro de poeira brilhante, adentravam em buracos negros e saíam, do outro lado, em universos paralelos. Pensar nisso era o alívio de um profundo incômodo, que João ora compreendia, ora não.

Para ele, lá fora era sempre um lugar melhor.

O irmão de João, Caíque, era dois anos mais velho e estava no mesmo sofá diante da mesma TV. Sua atenção, porém, se voltava inteiramente para o celular que trazia nas mãos e que cutucava nervosamente, deixando escapar aqui e ali um risinho abobado. Conversava, através do aplicativo, ao mesmo tempo com a namorada e com o melhor amigo, alternando entre um e outro, e ainda ouvia música no fone de ouvido. Se lhe tomassem o celular, Caíque se perdia. Ficava inquieto, com dificuldade de concentração.

Denise era a mãe dos dois rapazes. Naquela tarde de quarta-feira ela estava caminhando de um lado para o outro do apartamento, falando agitada ao celular com a irmã Desirée. Os últimos dias foram de intensa movimentação: o patriarca da família, Nino Belmonte, estava para completar noventa anos, e era Denise, sua filha mais velha, quem estava organizando os preparativos da celebração. Ela já havia falado com cinco pessoas desde que almoçou, às quatorze horas, sem contar as diversas mensagens eletrônicas e as postagens nas redes sociais.

Assumiu a responsabilidade pelo almoço, pelo bolo, pela convocação e acomodação dos parentes na casa do aniversariante. Não era, no entanto, o prazer que levava a ser sempre ela quem tomava a iniciativa nos eventos da família. Denise fazia isso porque, se não fizesse, ninguém mais faria.

Caíque”, ela estava de pé diante do filho mais velho. “Quantas pessoas você vai levar pro aniversário do vovô? Caíque, estou falando com você.”

Baixando o celular com um suspiro entediado, o irmão de João pareceu pensar.

Duas”, ele enfim respondeu. “Não, três. Vou levar a Rafa, o Dereco e a Caroline.”

Tem certeza?”

Acho que sim.”

Acha ou tem certeza, Caíque?”

Acho que tenho certeza.”

Caíque!”

O aniversário do velho é só daqui a um mês, mãe. Eu sei lá se ainda vou estar namorando a Rafaela. Não sei nem se vou estar vivo daqui a um mês.”

Vou botar três pessoas. Se até lá você inventar de chamar mais gente, não quero saber. Vou barrar todo mundo e seus amigos vão ter que descer a Serra a pé. E você, João? Não vai mesmo levar ninguém?”

Não, mãe.”

Por que você não leva aquela sua amiga, a Moema?”

Justamente porque ela é minha amiga.”

Eu nunca vi essa amiga do João”, Caíque se intrometeu na conversa. “É amiga de verdade ou imaginária?”

É de verdade”, respondeu Denise, defendendo o caçula. “Eu já vi os dois juntos.”

É humana?”

É humana, é de carne e osso e respira. Agora pare de implicar com o seu irmão.”

João deixou há tempos de se importar com Caíque. Havia sido pior na infância, com ataques verbais que não raro descambavam em agressão física. Caíque era o filho extrovertido, forte e bonito. João era baixo, silencioso, com problemas de autoestima e de socialização. Sofreu bastante a perseguição do outro na infância e na adolescência, mas agora isso não o incomodava tanto. Aprendeu a ignorar os ataques, a olhar além.

E naquele instante, por exemplo, João olhava para a mãe atarefada, quase estressada, imaginando que ela era uma espécie de força da gravidade naquela família. Se ela não existisse, os corpos celestes que a orbitavam poderiam se dispersar. Seguiriam cada um o seu caminho, até se tornarem apenas pontos não identificáveis no espaço. Fora do alcance da visão.

A mãe continuava falando alguma coisa sobre o quanto as pessoas eram complicadas, mas, embora permanecesse sentado no sofá, João já havia ido embora.


*


Noventa anos.

A vontade de Denise era, num gesto de violência e radicalismo, esfregar essas duas palavras na cara de cada parente que hesitava em confirmar presença no aniversário de seu pai. Não se conformava com o fato de nenhum deles conseguir compreender a importância do aniversário do Senhor Belmonte, o privilégio que era para alguém, num mundo cada vez mais violento e egoísta, chegar aos noventa anos. E chegar inteiro, lúcido, saudável. Era façanha para poucos.

Isso ela ia dizendo à irmã, Desirée, que ainda estava no celular. E o privilégio, Denise prosseguiu, não deveria ser só do aniversariante. Seus parentes, filhos, sobrinhos, netos, irmãos, deveriam sentir-se orgulhosos. Honrados por poderem compartilhar a longevidade do patriarca.

Mas a maioria das pessoas com quem havia falado parecia sequer se lembrar do membro mais velho da família. Não o visitavam. Não lhe telefonavam de vez em quando, para saber de sua saúde. Todos muito ocupados, muito atarefados. Sem espaço na complexidade de suas vidas para homenagear aquele que, mais do que todos os outros Belmontes juntos, merecia ser homenageado.

Você há de convir que ele também não ajuda, Denise”, argumentou Desirée, do outro lado da linha. “Depois que a mamãe morreu, papai se trancou naquela casa lá na Serra e se fechou pro mundo. Não quer saber de mais ninguém. Natural que ninguém queira saber dele.”

Eu não vejo nada de natural”, Denise já começava a se estressar. O tom de sua voz subia um nível, e suas mãos passavam a transpirar abundantemente. “Muito pelo contrário. Agora é que eu faço questão de mostrar pro papai que ele não está sozinho. Que ele ainda tem uma família que o respeita e que o admira. E que o ama. Eu amo muito o meu pai, tá? Ele pode ser uma pessoa difícil, pode ter se fechado, mas ele sempre vai ser o meu pai. Todo mundo reclama que ele se fechou, mas ninguém pergunta por quê. Ninguém procura saber o que está se passando na cabeça dele, se ele está sofrendo.”

De repente as pessoas acham que, como o tempo está tão curto e ele já está mesmo perto de morrer, o melhor é dar atenção pra algo mais importante.”

Porra, Desirée!”

Furiosa, Denise desligou na cara da irmã. No sofá, Caíque sequer reparou que a mãe tinha gritado na cozinha. João, por sua vez, ainda que perdido entre constelações, ouviu a voz de Denise, e foi até ela.

O que houve?”

Denise estava de frente para a pia. De costas, portanto, para o filho.

Nada, nada.”

Escondia as lágrimas.

Por que você gritou?”

Não foi nada, João. Tudo bem.”

Vou convidar a Moema, ok?”

Ah, que bom, João. Obrigada, filho.”

Ok.”

Enquanto o filho retornava para a sala, Denise tratava de se recompor. Se existia algo no mundo capaz de deixá-la apavorada, esse algo era a ideia de perder o pai.


*


Um pequeno asteroide, naquele instante, atingiu a Lua vindo numa velocidade de mais de cinquenta mil quilômetros por hora. Seus quinhentos quilos, acomodados em apenas um metro e meio de diâmetro, foram suficientes para que uma grande explosão criasse mais uma cratera no solo lunar.

O asteroide evaporou-se. Da Terra foi possível ver a luz da explosão sem o auxílio de telescópios.

Tudo isso sob o mais profundo silêncio.


*


De volta ao quarto – o irmão, ainda trocando mensagens ao celular, nem percebeu a sua saída da sala –, João ligou para Moema.

Quer ir no aniversário do meu avô?”

Por quê?”

Moema era diferente.

Porque ele vai fazer noventa anos.”

Isso não é pra qualquer um.”

É o que minha mãe vive dizendo.”

Eu gostaria de ir, sim. Obrigada.”

Vai ser em Visconde de Mauá.”

Seus avós moram em Visconde de Mauá?”

Não. Só ele. Minha avó morreu há seis anos.”

Ele vive lá sozinho?”

Não. Tem uma moça que cuida dele.”

Ela é legal?”

Acho que sim.”

Eu não conheci meus avós.”

Nenhum deles?”

Nenhum. Se eu pudesse trocar meus dois irmãos por um avô, eu trocaria.”

Eu trocaria o meu irmão por um par de meias.”

Qual o nome do seu avô?”

Nino Belmonte.”

Ele deve gostar de café.”

Conversar com Moema era geralmente assim. A capacidade de sair de um assunto e de retornar como se não houvesse saído, as inesperadas associações e o humor quase sempre involuntário tornavam seus diálogos imprevisíveis. Na faculdade não faltava quem achasse que era de propósito que ela agia daquele jeito. Que fazia o gênero de louquinha, e por causa disso seria merecidamente vista com antipatia pelos colegas. Mas Moema, mesmo que seu comportamento a tornasse pouco popular, era ingênua demais para fazer gênero, ou para criar uma persona com a qual pudesse se apresentar socialmente e esconder os próprios medos e defeitos.

Às vezes ela se confundia ao falar, e sem qualquer razão punha-se a chorar discretamente. Em sua bolsa não faltavam lenços de papel.

Fizera terapia por um ano, mas abandonou. João gostava de conversar com ela.

Minha mãe quer uma grande celebração”, prosseguiu João. “Quer que toda a família compareça. Ela está se estressando, porque a maioria das pessoas está enrolando pra não ir. Fora o fato de que os grandes amigos do vovô já morreram todos.”

E o Senhor Belmonte sabe disso?”

O Senhor Belmonte quase não fala mais com os parentes, depois que a minha avó morreu. Vive refugiado naquela casa. Há inclusive um ponto da casa que ele interditou. Mandou até acrescentar uma parede e uma porta, da qual só ele tem a chave.”

Por que ele faz isso?”

Não sei. Ninguém da família sabe.”

O que ele alega pra agir assim?”

Não alega. A casa é dele e ele faz o que bem entende com ela.”

O que sua mãe acha disso?”

Acho que ela fica triste. Ela acredita que ele faz essas coisas porque está sofrendo.”

E o que você acha?”

Não acho nada. Se ele estivesse sofrendo, deveria pedir ajuda. O que não falta é parente pra ajudá-lo.”

No sábado vamos fazer uma maratona de Jornada nas Estrelas – A Nova Geração. Vai ter aquele episódio duplo com os borgs. Você quer ir?”

Moema tinha isso também. Era fã de seriados televisivos, e o fato de gostar de ficção científica terminaria sendo mais um ponto a aproximá-los.

Ok”, ele respondeu.

Você disse que a maioria dos parentes não quer ir no aniversário. Deve ser por isso que ele não pede ajuda.”

Pode ser.”

Você acha que o Senhor Belmonte vai gostar de mim?”

Não sei. Não sei por que não gostaria. Mas também não sei se ele ainda gosta de alguma coisa.”

Preciso ir agora. Podemos nos falar depois?”

Claro.”

Após encerrar a ligação, João voltou à cozinha. Enquanto avisava a mãe que Moema havia aceitado o convite, a própria Moema, em casa, pegava mais um lenço de papel. Imaginou-se no lugar do avô de João, sozinho numa casa, sem a pessoa que amava e evitado pelos parentes. Então começou a chorar.


*


A irmã de Denise, tia de João e de Caíque, era a segunda filha do Senhor Belmonte (há ainda uma terceira, a caçula, que conheceremos em outra oportunidade). Aos 45 anos, vivia num pequeno apartamento alugado no bairro da Tijuca, com um par de cães da raça Yorkshire que ela tratava como filhos, Mimo e Piuí. Ela se chamava, como já visto, Desirée.

Desirée era solitária, amargurada, muitas vezes rendendo-se ao desespero e acreditando que a garrafa de vodka era um excelente esconderijo.

O outro esconderijo era a internet. Em suas postagens nas redes sociais não faltavam fotos de roupas, lanches, lugares e, principalmente, dos cães. Quem a conhecesse apenas por seu perfil, a invejaria. Desirée parecia ser a mais feliz das mulheres no mundo. E ela perdia muito tempo de sua vida construindo essa falsa imagem, horas e horas diante da tela do celular ou do notebook dando demonstrações de como a sua vida era maravilhosa.

Pois há apenas um mês, talvez menos, Desirée estava naquele mesmo apartamento, sofrendo um estupro.

Ela se casou uma vez, com Fernando, mas não deu certo e ele a deixou. Vieram então outros homens em sua vida, muitos homens, que na maioria ela conheceu virtualmente e com quem não conseguiu estabelecer relacionamentos que durassem mais de dois meses e muitas lágrimas.

O último desses relacionamentos foi com Eurico. Um homem bonito, forte e que trabalhava na Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Após extensa troca de mensagens e um interesse sexual próximo da selvageria, Desirée decidiu encontrar Eurico no mundo real. O homem era bastante seguro e envolvente, e foi preciso muito autocontrole da parte dela, para não ceder à sua proposta de continuarem em outro lugar a conversa.

No segundo encontro, uma semana após o primeiro, ela não resistiu e cedeu. Acabou trazendo o policial até o seu apartamento e, sob o efeito da garrafa de vinho que Eurico trouxera, foi deixando o corpo dele subir sobre o seu no sofá. Ela tentou não reparar no revólver que ele havia tirado do coldre e depositou sobre a mesinha ao lado. Tentou achar natural. Mas não conseguiu.

Tá bom”, ela então reclamou, quando ele começou a desabotoar a sua calça. “Já chega. É melhor a gente parar por aqui.”

Não chegava, no entanto, para Eurico. Ele não veio de Nova Iguaçu até ali para voltar de mãos abanando. Portanto, não havia como respeitar as negativas, as tentativas de defesa e, por fim, as lágrimas de Desirée. Ele fez como disse, pelo aplicativo, que faria: com raiva, com dor. Como ela merecia. E ela, que ingenuamente achou que toda aquela conversa não passaria de palavras, apenas palavras, símbolos destinados a se perder na nuvem, apenas a manifestação não realizável de uma fantasia, jamais pensou protagonizar, e na frente de seus filhos caninos, tais momentos de horror.

Por vergonha, ela não contou a ninguém. Limitou-se a bloquear Eurico em seu celular e a rezar para que ele nunca mais a procurasse.

Desde então sua face se tornou instável. Seu sorriso, trêmulo.

Porra, Desirée!”

Era o espôrro de sua irmã mais velha se repetindo, pela milésima vez, em sua cabeça.

Na cama com Mimo e Piuí, que cochilavam agarrados um ao outro, Desirée ainda permaneceria algum tempo falando alô ao celular. Até que se deu conta de que Denise havia desligado.


*


Há uma teoria na Física que sugere que os corpos atraídos e engolidos por um buraco negro não são destruídos, mas armazenados para sempre em seu interior. O misterioso corpo celeste, cuja natureza vem tirando o sono dos cérebros mais brilhantes de nosso planeta, seria ainda capaz de manter, em sua superfície, uma cópia bidimensional do objeto armazenado, como uma projeção holográfica direcionada para fora de seu campo gravitacional.

Esta mesma teoria, como que nascida com o único intuito de virar pelo avesso as nossas concepções de identidade e realidade, sugere também que todos nós, eu, você, o seu artista favorito, o universo, não passaríamos de hologramas. Projeções. Objetos carentes da existência tal como conhecemos. Nós olhamos, contemplamos, admiramos, amamos e cobiçamos coisas e pessoas que talvez nem existam.


*


A “moça que cuidava do Senhor Belmonte”, conforme João havia dito à amiga Moema, se chamava Francisca, e já havia passado dos sessenta anos. Quando veio trabalhar para os Belmonte naquela casa na parte mineira de Maringá, vila de Visconde de Mauá, na região serrana do Rio de Janeiro, Francisca ainda não havia chegado aos quarenta. Veridiana, a Senhora Belmonte, ainda vivia. E Nino, o Senhor Belmonte, ainda podia ser flagrado com a face iluminada por largos sorrisos.

Antes – recorda Francisca –, a casa via movimento. Exalava vida e alegria. Era frequentada pelos amigos e parentes do casal Belmonte, que gostava de promover reuniões e comemorações no lugar. No amplo jardim nos fundos da casa as crianças brincavam e se aventuravam na floresta logo depois, até chegarem numa das muitas cachoeiras da região. Os meninos Caíque e João, netos dos Belmonte, muito se divertiram por ali. Francisca, que há tempos não vê nenhum dos dois, imagina que já devem estar crescidos. Mais preocupados em formar as próprias famílias.

Tão bem tratado à época, o jardim está agora esquecido. O mato alto quase esconde os dois bancos de pedra. As borboletas amarelas, que apareciam com frequência e em grande número, no entanto, continuam por ali.

Da mesma forma, o interior da casa foi praticamente esquecido pelo dono que restou. Não há mais eventos, as visitas foram escasseando até desaparecerem. Como num desenho que, após a passagem da borracha sobre o papel, volta à condição de esboço.

Hoje, o Senhor Belmonte não sorri. Desde que perdeu a Senhora Belmonte para o câncer, perdeu também o interesse pela própria respiração. Silencioso, vive na alternância entre o quarto e o banheiro, sem se preocupar com a aparência cada vez mais descuidada. Os outros, ou ele mesmo, não importam mais. Àquela altura de sua vida, o Senhor Belmonte vive num estado de profundo torpor.

E assim permaneceria, não fosse a esquisitice que o tomou, há pouco mais de um ano. De repente, sem qualquer aviso ou justificativa, o Senhor Belmonte passou a se pentear, a se perfumar e a se vestir melhor. Parecia até, ainda que não como nos bons tempos, elegante. Depois mandou erguer a tal parede isolando uma das salas da casa. Contratou pedreiros, levantou a parede e botou uma porta. Estragou o lindo arco de pedra que havia na sala, mas não pareceu se incomodar com isso. Por fim, chamou o chaveiro, guardando consigo as duas cópias da chave. Para Francisca, não deu nenhuma explicação.

Ele passava horas no novo cômodo da casa. Certa de que o patrão havia enlouquecido, Francisca punha o ouvido junto à porta, mas do outro lado parecia não haver ninguém, de tanto silêncio. Pelo buraco da fechadura também não era possível espiar, e quando ela afinal confrontou o Senhor Belmonte sobre o que estava acontecendo, a resposta foi imediata:

Não interessa.”

Mas o que o senhor tanto faz lá dentro?”

Não interessa, Francisca.”

A empregada ligou para uma das filhas do Senhor Belmonte, aquela com quem tinha mais contato, e a que demonstrava mais atenção para com o pai. Denise veio o mais rápido possível conversar com ele, que se manteve irredutível. O que acontecia dentro do novo cômodo era problema dele. Ele não estava incomodando ninguém. Não estava cometendo nenhum crime. Logo, ninguém tinha o direito de vir perturbá-lo.

Deixe pelo menos uma cópia da chave com Francisca, papai.”

Não deixo.”

Seja razoável…”

Não quero.”

E não houve jeito de fazê-lo mudar de ideia. Denise voltaria para o Rio de Janeiro preocupada, deixando uma série de recomendações para Francisca. Também a filha temia pela sanidade do pai.

Às vezes, durante a noite, Francisca era despertada pelo ruído dos chinelos do Senhor Belmonte arrastando no chão. Logo depois vinha o barulho da porta nova sendo aberta, para se fechar em seguida. E então, por último, o som da chave trancando o velho lá dentro. A orientação que Denise deixou era a de que, se ele demorasse muito, que Francisca chamasse a polícia e os vizinhos, e arrombasse a porta. Indagada sobre o que seria muito, a filha pensou.

Meia hora. Não. Quarenta minutos. Se ele ficar mais de quarenta minutos, derrube a porta.”

Naquela noite, Francisca havia acabado de acordar novamente. Os mesmos ruídos discretos, mas que, para alguém com boa audição e sono leve, não passavam despercebidos, vinham da sala para avisar que a situação se repetia. O Senhor Belmonte estava entrando no quarto de novo.