Não
fosse a gravidade, os planetas estariam flutuando, dispersos, no
espaço. O dia, a noite e as estações seriam momentos aleatórios e
de duração indeterminada. A órbita de nosso planeta em torno do
sol não existiria, e, soltos, poderíamos mesmo ir de encontro a
ele. Ou nos distanciaríamos a ponto de a temperatura da Terra cair
até não mais permitir a existência de vida.
João
estava no sofá da sala, assistindo na TV um documentário sobre
astronomia. Sua paixão. Aos dezenove anos, era o rapaz fascinado
pelo espaço, pelo desconhecido que tanto o intrigava quanto comovia.
A
vontade de sumir e fugir, que ocasionalmente acomete os seres
humanos, em João acontecia com frequência, todos os dias. E, na
impossibilidade de uma fuga de verdade, ele se limitava a deixar
aberta a porta de sua mente para que os pensamentos fossem embora. E
eles iam todos para lá: atravessavam nuvens de gases luminosos,
acompanhavam a trajetória de cometas que deixavam um rastro de
poeira brilhante, adentravam em buracos negros e saíam, do outro
lado, em universos paralelos. Pensar nisso era o alívio de um
profundo incômodo, que João ora compreendia, ora não.
Para
ele, lá fora era sempre um lugar melhor.
O
irmão de João, Caíque, era dois anos mais velho e estava no mesmo
sofá diante da mesma TV. Sua atenção, porém, se voltava
inteiramente para o celular que trazia nas mãos e que cutucava
nervosamente, deixando escapar aqui e ali um risinho abobado.
Conversava, através do aplicativo, ao mesmo tempo com a namorada e
com o melhor amigo, alternando entre um e outro, e ainda ouvia música
no fone de ouvido. Se lhe tomassem o celular, Caíque se perdia.
Ficava inquieto, com dificuldade de concentração.
Denise
era a mãe dos dois rapazes. Naquela tarde de quarta-feira ela estava
caminhando de um lado para o outro do apartamento, falando agitada ao
celular com a irmã Desirée. Os últimos dias foram de intensa
movimentação: o patriarca da família, Nino Belmonte, estava para
completar noventa anos, e era Denise, sua filha mais velha, quem
estava organizando os preparativos da celebração. Ela já havia
falado com cinco pessoas desde que almoçou, às quatorze horas, sem
contar as diversas mensagens eletrônicas e as postagens nas redes
sociais.
Assumiu
a responsabilidade pelo almoço, pelo bolo, pela convocação e
acomodação dos parentes na casa do aniversariante. Não era, no
entanto, o prazer que levava a ser sempre ela quem tomava a
iniciativa nos eventos da família. Denise fazia isso porque, se não
fizesse, ninguém mais faria.
“Caíque”,
ela estava de pé diante do filho mais velho. “Quantas pessoas você
vai levar pro aniversário do vovô? Caíque, estou falando com
você.”
Baixando
o celular com um suspiro entediado, o irmão de João pareceu pensar.
“Duas”,
ele enfim respondeu. “Não, três. Vou levar a Rafa, o Dereco e a
Caroline.”
“Tem
certeza?”
“Acho
que sim.”
“Acha
ou tem certeza, Caíque?”
“Acho
que tenho certeza.”
“Caíque!”
“O
aniversário do velho é só daqui a um mês, mãe. Eu sei lá se
ainda vou estar namorando a Rafaela. Não sei nem se vou estar vivo
daqui a um mês.”
“Vou
botar três pessoas. Se até lá você inventar de chamar mais gente,
não quero saber. Vou barrar todo mundo e seus amigos vão ter que
descer a Serra a pé. E você, João? Não vai mesmo levar ninguém?”
“Não,
mãe.”
“Por
que você não leva aquela sua amiga, a Moema?”
“Justamente
porque ela é minha amiga.”
“Eu
nunca vi essa amiga do João”, Caíque se intrometeu na conversa.
“É amiga de verdade ou imaginária?”
“É
de verdade”, respondeu Denise, defendendo o caçula. “Eu já vi
os dois juntos.”
“É
humana?”
“É
humana, é de carne e osso e respira. Agora pare de implicar com o
seu irmão.”
João
deixou há tempos de se importar com Caíque. Havia sido pior na
infância, com ataques verbais que não raro descambavam em agressão
física. Caíque era o filho extrovertido, forte e bonito. João era
baixo, silencioso, com problemas de autoestima e de socialização.
Sofreu bastante a perseguição do outro na infância e na
adolescência, mas agora isso não o incomodava tanto. Aprendeu a
ignorar os ataques, a olhar além.
E
naquele instante, por exemplo, João olhava para a mãe atarefada,
quase estressada, imaginando que ela era uma espécie de força da
gravidade naquela família. Se ela não existisse, os corpos celestes
que a orbitavam poderiam se dispersar. Seguiriam cada um o seu
caminho, até se tornarem apenas pontos não identificáveis no
espaço. Fora do alcance da visão.
A
mãe continuava falando alguma coisa sobre o quanto as pessoas eram
complicadas, mas, embora permanecesse sentado no sofá, João já
havia ido embora.
*
Noventa
anos.
A
vontade de Denise era, num gesto de violência e radicalismo,
esfregar essas duas palavras na cara de cada parente que hesitava em
confirmar presença no aniversário de seu pai. Não se conformava
com o fato de nenhum deles conseguir compreender a importância do
aniversário do Senhor Belmonte, o privilégio que era para alguém,
num mundo cada vez mais violento e egoísta, chegar aos noventa anos.
E chegar inteiro, lúcido, saudável. Era façanha para poucos.
Isso
ela ia dizendo à irmã, Desirée, que ainda estava no celular. E o
privilégio, Denise prosseguiu, não deveria ser só do
aniversariante. Seus parentes, filhos, sobrinhos, netos, irmãos,
deveriam sentir-se orgulhosos. Honrados por poderem compartilhar a
longevidade do patriarca.
Mas
a maioria das pessoas com quem havia falado parecia sequer se lembrar
do membro mais velho da família. Não o visitavam. Não lhe
telefonavam de vez em quando, para saber de sua saúde. Todos muito
ocupados, muito atarefados. Sem espaço na complexidade de suas vidas
para homenagear aquele que, mais do que todos os outros Belmontes
juntos, merecia ser homenageado.
“Você
há de convir que ele também não ajuda, Denise”, argumentou
Desirée, do outro lado da linha. “Depois que a mamãe morreu,
papai se trancou naquela casa lá na Serra e se fechou pro mundo. Não
quer saber de mais ninguém. Natural que ninguém queira saber dele.”
“Eu
não vejo nada de natural”, Denise já começava a se estressar. O
tom de sua voz subia um nível, e suas mãos passavam a transpirar
abundantemente. “Muito pelo contrário. Agora é que eu faço
questão de mostrar pro papai que ele não está sozinho. Que ele
ainda tem uma família que o respeita e que o admira. E que o ama. Eu
amo muito o meu pai, tá? Ele pode ser uma pessoa difícil, pode ter
se fechado, mas ele sempre vai ser o meu pai. Todo mundo reclama que
ele se fechou, mas ninguém pergunta por quê. Ninguém procura saber
o que está se passando na cabeça dele, se ele está sofrendo.”
“De
repente as pessoas acham que, como o tempo está tão curto e ele já
está mesmo perto de morrer, o melhor é dar atenção pra algo mais
importante.”
“Porra,
Desirée!”
Furiosa,
Denise desligou na cara da irmã. No sofá, Caíque sequer reparou
que a mãe tinha gritado na cozinha. João, por sua vez, ainda que
perdido entre constelações, ouviu a voz de Denise, e foi até ela.
“O
que houve?”
Denise
estava de frente para a pia. De costas, portanto, para o filho.
“Nada,
nada.”
Escondia
as lágrimas.
“Por
que você gritou?”
“Não
foi nada, João. Tudo bem.”
“Vou
convidar a Moema, ok?”
“Ah,
que bom, João. Obrigada, filho.”
“Ok.”
Enquanto
o filho retornava para a sala, Denise tratava de se recompor. Se
existia algo no mundo capaz de deixá-la apavorada, esse algo era a
ideia de perder o pai.
*
Um
pequeno asteroide, naquele instante, atingiu a Lua vindo numa
velocidade de mais de cinquenta mil quilômetros por hora. Seus
quinhentos quilos, acomodados em apenas um metro e meio de diâmetro,
foram suficientes para que uma grande explosão criasse mais uma
cratera no solo lunar.
O
asteroide evaporou-se. Da Terra foi possível ver a luz da explosão
sem o auxílio de telescópios.
Tudo
isso sob o mais profundo silêncio.
*
De
volta ao quarto – o irmão, ainda trocando mensagens ao celular,
nem percebeu a sua saída da sala –, João ligou para Moema.
“Quer
ir no aniversário do meu avô?”
“Por
quê?”
Moema
era diferente.
“Porque
ele vai fazer noventa anos.”
“Isso
não é pra qualquer um.”
“É
o que minha mãe vive dizendo.”
“Eu
gostaria de ir, sim. Obrigada.”
“Vai
ser em Visconde de Mauá.”
“Seus
avós moram em Visconde de Mauá?”
“Não.
Só ele. Minha avó morreu há seis anos.”
“Ele
vive lá sozinho?”
“Não.
Tem uma moça que cuida dele.”
“Ela
é legal?”
“Acho
que sim.”
“Eu
não conheci meus avós.”
“Nenhum
deles?”
“Nenhum.
Se eu pudesse trocar meus dois irmãos por um avô, eu trocaria.”
“Eu
trocaria o meu irmão por um par de meias.”
“Qual
o nome do seu avô?”
“Nino
Belmonte.”
“Ele
deve gostar de café.”
Conversar
com Moema era geralmente assim. A capacidade de sair de um assunto e
de retornar como se não houvesse saído, as inesperadas associações
e o humor quase
sempre
involuntário tornavam seus diálogos imprevisíveis. Na faculdade
não faltava quem achasse que era de propósito que ela agia daquele
jeito. Que fazia o gênero de louquinha, e por causa disso seria
merecidamente vista com antipatia pelos colegas. Mas Moema, mesmo que
seu comportamento a tornasse pouco popular, era ingênua demais para
fazer gênero, ou para criar uma persona com a qual pudesse se
apresentar socialmente e esconder os próprios medos e defeitos.
Às
vezes ela se confundia ao falar, e sem qualquer razão punha-se a
chorar discretamente. Em sua bolsa não faltavam lenços de papel.
Fizera
terapia por um ano, mas abandonou. João gostava de conversar com
ela.
“Minha
mãe quer uma grande celebração”, prosseguiu João. “Quer que
toda a família compareça. Ela está se estressando, porque a
maioria das pessoas está enrolando pra não ir. Fora o fato de que
os grandes amigos do vovô já morreram todos.”
“E
o Senhor Belmonte sabe disso?”
“O
Senhor Belmonte quase não fala mais com os parentes, depois que a
minha avó morreu. Vive refugiado naquela casa. Há inclusive um
ponto da casa que ele interditou. Mandou até acrescentar uma parede
e uma porta, da qual só ele tem a chave.”
“Por
que ele faz isso?”
“Não
sei. Ninguém da família sabe.”
“O
que ele alega pra agir assim?”
“Não
alega. A casa é dele e ele faz o que bem entende com ela.”
“O
que sua mãe acha disso?”
“Acho
que ela fica triste. Ela acredita que ele faz essas coisas porque
está sofrendo.”
“E
o que você acha?”
“Não
acho nada. Se ele estivesse sofrendo, deveria pedir ajuda. O que não
falta é parente pra ajudá-lo.”
“No
sábado vamos fazer uma maratona de Jornada
nas Estrelas – A Nova Geração.
Vai ter aquele episódio duplo com os borgs. Você quer ir?”
Moema
tinha isso também. Era fã de seriados televisivos, e o fato de
gostar de ficção científica terminaria sendo mais um ponto a
aproximá-los.
“Ok”,
ele respondeu.
“Você
disse que a maioria dos parentes não quer ir no aniversário. Deve
ser por isso que ele não pede ajuda.”
“Pode
ser.”
“Você
acha que o Senhor Belmonte vai gostar de mim?”
“Não
sei. Não sei por que não gostaria. Mas também não sei se ele
ainda gosta de alguma coisa.”
“Preciso
ir agora. Podemos nos falar depois?”
“Claro.”
Após
encerrar a ligação, João voltou à cozinha. Enquanto avisava a mãe
que Moema havia aceitado o convite, a própria Moema, em casa, pegava
mais um lenço de papel. Imaginou-se no lugar do avô de João,
sozinho numa casa, sem a pessoa que amava e evitado pelos parentes.
Então começou a chorar.
*
A
irmã de Denise, tia de João e de Caíque, era a segunda filha do
Senhor Belmonte (há ainda uma terceira, a caçula, que conheceremos
em outra oportunidade). Aos 45 anos, vivia num pequeno apartamento
alugado no bairro da Tijuca, com um par de cães da raça Yorkshire
que ela tratava como filhos,
Mimo
e Piuí.
Ela
se chamava,
como já visto, Desirée.
Desirée
era solitária, amargurada, muitas vezes rendendo-se ao desespero e
acreditando que a garrafa de vodka era um excelente esconderijo.
O
outro esconderijo era a internet. Em suas postagens nas redes sociais
não faltavam fotos de roupas, lanches, lugares e, principalmente,
dos cães. Quem a conhecesse apenas por seu perfil, a invejaria.
Desirée parecia ser a mais feliz das mulheres no mundo. E ela perdia
muito tempo de sua vida construindo essa falsa imagem, horas e horas
diante da tela do celular ou do notebook dando demonstrações de
como a sua vida era maravilhosa.
Pois
há apenas um mês, talvez menos, Desirée estava naquele mesmo
apartamento, sofrendo um estupro.
Ela
se casou uma vez, com Fernando, mas não deu certo e ele a deixou.
Vieram então outros homens em sua vida, muitos homens, que na
maioria ela conheceu virtualmente e com quem não conseguiu
estabelecer relacionamentos que durassem mais de dois meses e muitas
lágrimas.
O
último desses relacionamentos foi com Eurico.
Um homem bonito, forte e que trabalhava na Polícia Civil do Estado
do Rio de Janeiro. Após extensa troca de mensagens e um interesse
sexual próximo da selvageria, Desirée decidiu encontrar Eurico
no mundo real. O homem era bastante seguro e envolvente, e foi
preciso muito autocontrole da parte dela, para não ceder à sua
proposta de continuarem em outro lugar a conversa.
No
segundo encontro, uma semana após o primeiro, ela não resistiu e
cedeu. Acabou trazendo o policial até o seu apartamento e, sob o
efeito da garrafa de vinho que Eurico
trouxera, foi deixando o corpo dele subir sobre o seu no sofá. Ela
tentou não reparar no revólver que ele havia tirado do coldre e
depositou sobre a mesinha ao lado. Tentou achar natural. Mas não
conseguiu.
“Tá
bom”, ela então reclamou, quando ele começou a desabotoar a sua
calça. “Já chega. É melhor a gente parar por aqui.”
Não
chegava, no entanto, para Eurico.
Ele não veio de Nova Iguaçu até ali para voltar de mãos abanando.
Portanto, não havia como respeitar as negativas, as tentativas de
defesa e, por fim, as lágrimas de Desirée. Ele fez como disse, pelo
aplicativo, que faria: com raiva, com dor. Como ela merecia. E ela,
que ingenuamente achou que toda aquela conversa não passaria de
palavras, apenas palavras, símbolos destinados a se perder na nuvem,
apenas a manifestação não realizável de uma fantasia, jamais
pensou protagonizar, e na frente de seus filhos caninos, tais
momentos de horror.
Por
vergonha, ela não contou a ninguém. Limitou-se a bloquear Eurico
em seu celular e a rezar para que ele nunca mais a procurasse.
Desde
então sua face se tornou instável. Seu sorriso, trêmulo.
“Porra,
Desirée!”
Era
o espôrro de sua irmã mais velha se repetindo, pela milésima vez,
em sua cabeça.
Na
cama com Mimo
e Piuí, que cochilavam agarrados um ao outro,
Desirée ainda permaneceria algum tempo falando alô
ao
celular. Até que se deu conta de que Denise havia desligado.
*
Há
uma teoria na Física que sugere que os corpos atraídos e engolidos
por um buraco negro não são destruídos, mas armazenados para
sempre em seu interior. O misterioso corpo celeste, cuja natureza vem
tirando o sono dos cérebros mais brilhantes de nosso planeta, seria
ainda capaz de manter, em sua superfície, uma cópia bidimensional
do objeto armazenado, como uma projeção holográfica direcionada
para fora de seu campo gravitacional.
Esta
mesma teoria, como que nascida com o único intuito de virar pelo
avesso as nossas concepções de identidade e realidade, sugere
também que todos nós, eu, você, o seu artista favorito, o
universo, não passaríamos de hologramas. Projeções. Objetos
carentes da existência tal como conhecemos. Nós olhamos,
contemplamos, admiramos, amamos e cobiçamos coisas e pessoas que
talvez nem existam.
*
A
“moça que cuidava do Senhor Belmonte”, conforme
João havia dito à amiga Moema, se chamava Francisca, e já havia
passado dos sessenta anos. Quando veio trabalhar para os Belmonte
naquela casa na parte mineira de Maringá, vila de Visconde de Mauá,
na região serrana do Rio de Janeiro, Francisca ainda não havia
chegado aos quarenta. Veridiana, a Senhora Belmonte, ainda vivia. E
Nino, o Senhor Belmonte, ainda podia ser flagrado com a face
iluminada por largos sorrisos.
Antes
– recorda Francisca –, a casa via movimento. Exalava vida e
alegria. Era frequentada pelos amigos e parentes do casal Belmonte,
que gostava de promover reuniões e comemorações no lugar. No amplo
jardim nos fundos da casa as crianças brincavam e se aventuravam na
floresta logo depois, até chegarem numa das muitas cachoeiras da
região. Os meninos Caíque e João, netos dos Belmonte, muito se
divertiram por ali. Francisca, que há tempos não vê nenhum dos
dois, imagina que já devem estar crescidos. Mais preocupados em
formar as próprias famílias.
Tão
bem tratado à época, o jardim está agora esquecido. O mato alto
quase esconde os dois bancos de pedra. As borboletas amarelas, que
apareciam com frequência e em grande número, no entanto, continuam
por ali.
Da
mesma forma, o interior da casa foi praticamente esquecido pelo dono
que restou. Não há mais eventos, as visitas foram escasseando até
desaparecerem. Como num desenho que, após a passagem da borracha
sobre o papel, volta à condição de esboço.
Hoje,
o Senhor Belmonte não sorri. Desde que perdeu a Senhora Belmonte
para o câncer, perdeu também o interesse pela própria respiração.
Silencioso, vive na alternância entre o quarto e o banheiro, sem se
preocupar com a aparência cada vez mais descuidada. Os outros, ou
ele mesmo, não importam mais. Àquela altura de sua vida, o Senhor
Belmonte vive num estado de profundo torpor.
E
assim permaneceria, não fosse a esquisitice que o tomou, há pouco
mais de um
ano.
De repente, sem qualquer aviso ou justificativa, o Senhor Belmonte
passou a se pentear, a se perfumar e a se vestir melhor. Parecia até,
ainda que não como nos bons tempos, elegante. Depois mandou erguer a
tal parede isolando uma das salas da casa. Contratou pedreiros,
levantou a parede e botou uma porta. Estragou o lindo arco de pedra
que havia na sala, mas não pareceu se incomodar com isso. Por fim,
chamou o chaveiro, guardando consigo as duas cópias da chave. Para
Francisca, não deu nenhuma
explicação.
Ele
passava horas no novo cômodo da casa. Certa de que o patrão havia
enlouquecido, Francisca punha o ouvido junto à porta, mas do outro
lado parecia não haver ninguém, de tanto silêncio. Pelo buraco da
fechadura também não era possível espiar, e quando ela afinal
confrontou o Senhor Belmonte sobre o que estava acontecendo, a
resposta foi imediata:
“Não
interessa.”
“Mas
o que o senhor tanto faz lá dentro?”
“Não
interessa, Francisca.”
A
empregada ligou para uma das filhas do Senhor Belmonte, aquela com
quem tinha mais contato, e a que demonstrava mais atenção para com
o pai. Denise veio o mais rápido possível conversar com ele, que se
manteve irredutível. O que acontecia dentro do novo cômodo era
problema dele. Ele não estava incomodando ninguém. Não estava
cometendo nenhum crime. Logo, ninguém tinha o direito de vir
perturbá-lo.
“Deixe
pelo menos uma cópia da chave com Francisca, papai.”
“Não
deixo.”
“Seja
razoável…”
“Não
quero.”
E
não houve jeito de fazê-lo mudar de ideia. Denise voltaria para o
Rio de Janeiro preocupada, deixando uma série de recomendações
para Francisca. Também a filha temia pela sanidade do pai.
Às
vezes, durante a noite, Francisca era despertada pelo ruído dos
chinelos do Senhor Belmonte arrastando no chão. Logo depois vinha o
barulho da porta nova sendo aberta, para se fechar em seguida. E
então, por último, o som da chave trancando o velho lá dentro. A
orientação que Denise deixou era a de que, se ele demorasse muito,
que Francisca chamasse a polícia e os vizinhos, e arrombasse a
porta. Indagada sobre o que seria muito,
a filha pensou.
“Meia
hora. Não. Quarenta minutos. Se ele ficar mais de quarenta minutos,
derrube a porta.”
Naquela
noite, Francisca havia acabado de acordar novamente. Os mesmos ruídos
discretos, mas que, para alguém com boa audição e sono leve, não
passavam despercebidos, vinham da sala para avisar que a situação
se repetia. O Senhor Belmonte estava entrando no quarto de novo.