sábado, 30 de outubro de 2010

Resultado do sorteio

Apenas duas pessoas se interessaram pela coletânea Servidor das Letras: Dani Carrara, de São Paulo, e Rosa Magalhães, de Teresina. Solicito a ambas que enviem seus endereços para mauricio_limeira@yahoo.com.br. Cada uma receberá um exemplar. Não haverá novos sorteios.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Garganta da Serpente


Editado por Agostina Sasaoka, A Garganta da Serpente é um portal/rede social que vem desde 1999 publicando conteúdo literário (contos, poemas, artigos). Nesta semana, um conto inédito meu, "Gerações", foi publicado por lá. Para quem quiser conferir, está em http://gargantadaserpente.com/coral/contos/ml_geracoes.shtml.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Laços

Foi um espírito que avisou a ela que ele não prestava.

Mesmo assim ela casou.

Um mês depois, o marido pôs veneno na coca-cola e ela não resistiu.

“Eu não te disse?”, o espírito veio perguntar depois.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Família pula do terceiro andar para fugir do 'diabo'

Uma família de origem africana que estava assistindo a TV pulou pela janela de um apartamento no terceiro andar de prédio da cidade de La Verriere (França) com medo do diabo. Na inusitada fuga, um bebê morreu.

Horas depois, a polícia esclareceu parcialmente o caso: o incidente começou quando um grupo de 13 pessoas estava assistindo a TV na sala. Um homem que estava nu no apartamento ouviu um bebê chorando e foi preparar a mamadeira. A esposa, ao ver o marido pelado, começou a gritar: "É o diabo, é o diabo!".

Em socorro aos gritos, a cunhada do "diabo" o esfaqueou em uma das mãos. Ele saiu pela porta da frente, e, quando retornou, os demais moradores, desesperados com a presença do "maligno" na residência, então decidiram sair pela janela.

O "diabo" pulou também, carregando uma criança de dois anos no colo. Ao chegar ao chão, ele correu e se escondeu atrás de um arbusto. A criança, o "capeta" e outros familiares ficaram feridos. O bebê chegou a ser levado a um hospital, mas não resistiu à queda.

Investigadores não encontraram qualquer sinal de alucinógenos ou ritual macabro no apartamento, segundo reportagem da BFM TV. A polícia ainda espera esclarecer muitos detalhes da história.

(Fonte: O Globo, http://oglobo.globo.com/blogs/moreira/posts/2010/10/25/familia-pula-do-terceiro-andar-para-fugir-do-diabo-335255.asp)

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Além

“Esse papo de disco de vinil rodado ao contrário de novo?”

Meu amigo se chamava Eric. Igual ao Clapton, ele dizia desde os tempos de Colégio Pedro II. Já estávamos formados e ele continuava dizendo aquilo quando apresentado a alguém. Se era um idiota, então eu também era, já que andava com ele. A questão é que ele jamais perdera alguns costumes da adolescência. Um deles era encontrar em tudo manifestações sobrenaturais.

“Se não acredita, então ouve.”

Era um disco da Legião Urbana. Logo a minha banda favorita. Pois Eric estava com o bom e velho LP no toca-discos e botou para tocar, rodando porém o disco ao contrário.

“Escuta só.”

Escutei. Não ouvi, no entanto, nenhuma mensagem satânica, e disse isso a ele.

“Escuta de novo”, ele insistiu.

Escutei de novo, e nada.

“Não ouviu a expressão Oxalá Belzebu?”

Ele tocou a porra do disco dez vezes, e em nenhuma delas eu ouvi oxalá belzebu. Fui acusado então de estar inconscientemente bloqueando meus ouvidos porque gostava do Renato Russo. Argumentei que ele, Eric, é que estava ouvindo o que queria ouvir, porque era um fanático paranóico sugestionável. E ficamos por isso mesmo. Achei melhor, então, mudar de assunto.

“O que você acha que atingiu a cabeça do Serra?”

“Bem lembrado. Deixa eu te mostrar uma coisa.”

Ele então mostrou no computador o vídeo do incidente em Campo Grande e o momento em que o candidato à Presidência da República José Serra teve a cabeça atingida por alguma coisa durante uma manifestação. Até aí nada demais. Mas Eric não podia ter deixado de descobrir no vídeo alguma coisa que ninguém havia percebido.

“Tá vendo isso? Aqui, no meio da multidão.”

Como eu nada visse, ele então selecionou um trecho da imagem na tela, ampliou e melhorou a resolução para me mostrar aquilo de que tinha certeza ser o rosto de uma figura diabólica abrindo-se num sorriso.

“Está vendo agora?”

“Não.”

“Porra. Esses óculos servem pra quê?”

Na volta para casa, enquanto caminhava contra o vento numa noite que prometia chuva, me dei conta de que invejava a imaginação fértil de Eric. Sua crença quase obsessiva no sobrenatural era a maneira dele reagir à secura, à tristeza, à covardia e à falta de sentido de que é feita a nossa realidade. Enquanto estava ocupando-se com tanto afinco em correr atrás de fantasmas, não via o quanto estamos sozinhos nessa existência, e o quanto somos incapazes de fazer alguma coisa concreta para reverter essa situação. Por isso nos refugiamos em templos. Por isso acendemos velas. Por isso adotamos um cachorro. Por isso casamos com quem não temos afinidade, o que dirá amor.

Foi com esse espírito que cheguei em casa e me atirei na cama. Pesado, triste e sozinho, sequer acendi a luz. Mas acabei deixando escapar em voz alta um apelo.

“Sobrenatural. Se você existe, esse é um bom momento para mostrar isso.”

Esperava qualquer coisa. Qualquer uma. Um ruído. Um objeto caindo. Uma trovoada. Qualquer som ou visão estranha, que viesse do nada e sem explicações. Nada aconteceu, no entanto. Se existia mesmo, o sobrenatural deveria estar dormindo. Com isso eu acabaria me rendendo ao desânimo e adormecendo também.

Ao acordar, a enfermeira já estava diante da cama. Parecia surpresa.

“O senhor dormiu bastante hoje.”

“Dormi? Tive sonhos curiosos. Lembranças da juventude.”

“Alguma antiga namorada?”

“Não, um amigo. Um velho amigo, já falecido. Se gabava de ter nome de músico. Engraçado que, no sonho, lembrei até de um sujeito que foi candidato à presidência. José Serra. Lembra dele?”

“Não, senhor.”

“Não é do seu tempo. Também já morreu.”

“O senhor precisa sonhar com gente viva.”

“Pois é, minha filha. Mas a única pessoa viva que conheço atualmente é você. Posso sonhar com você?”

“Depende do que o senhor vai sonhar.”

“Por que será que sonhei com essas pessoas? Estarei para morrer também?”

“Cruz credo, vire essa boca pra lá.”

“Preciso ir ao banheiro. Você me ajuda?”

“Ajudo.”

Chamava-se Cila. Na verdade, Priscila. Eu nunca concordei com o nome dela abreviado. Muito curto, para uma mulher tão grande. Mas era assim que ela queria. Cila. Então eu a chamava de Cila.

Perdera o marido para o câncer aos trinta anos. E perdera o filho, dois anos depois, para a violência urbana. Com cinquenta anos, me encontrou. Cuidava de mim como se eu fosse o pai dela. Não gostava de sair, não tinha vida social. Vivia para fazer de meus últimos dias uma coisa prazerosa. E estava conseguindo.

“Não gosto do senhor aí dentro com a porta fechada. Pode deixar aberta. Juro que não vou olhar.”

Era a mesma coisa toda vez que eu ia ao banheiro. O medo dela de que eu caísse e morresse. Coitada, não queria perder mais um. Mas e se eu caísse, e morresse, e daí? Minha vida não era tão boa assim para que eu quisesse segurá-la por mais tempo. Em todo o caso, naquela manhã pude terminar ainda vivo o meu xixi, lavar as mãos e abrir a porta para Cila.

“Olha”, mostrei a ela o vaso sanitário. “Tampa levantada.”

“Muito bem.”

Cila então me ajudou a voltar para o quarto. Passavam os dias, e caminhar e ficar de pé eram atividades que exigiam um esforço físico cada vez maior. Quando enfim cheguei até a cama e pude me deitar, estava ofegante.

“O senhor está bem?”

“Cansado.”

Havia preocupação nos olhos dela. Curioso como a idade muda os objetos de nossas aflições. Quando jovem, perturbava-me a possibilidade de não existir nada depois da morte. De que o fim fosse isso mesmo, apenas fim. Hoje me encontro a um passo dele e não estou dando a mínima.

“Talvez eu durma mais um pouco. Pode ir, Cila.”

“Vou ficar aqui.”

Segurei em suas mãos e sorri. Ela parecia emocionada. Talvez achando que eu estivesse me despedindo. Mas só estava agradecendo. Dizendo sem falar que ela era a pessoa mais gentil que eu havia conhecido em toda a minha vida. Então fechei os olhos.

Ao abri-los o apartamento estava vazio e diferente. Mais cinza. Sem cor. E sem nenhum sinal de Cila. Quando saí da cama, não me dei conta de que consegui fazê-lo sem ajuda. Percorri todo o imóvel e vi que estava sozinho em casa. E estava triste. Profundamente triste, com uma tristeza que sabia que não iria passar. Nunca.

Na janela, abri a cortina e vi as pessoas lá fora, na rua. Vivendo. Tive medo de todas elas. Não sabia explicar a razão, mas temê-las me pareceu algo natural e lógico. Por isso não fiz mais perguntas. A partir daquele momento eu me limitaria a olhar, de longe, coberto dessa silenciosa tristeza, o movimento daquelas criaturas distantes que respiravam, transpiravam e às vezes conseguiam sorrir.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Engano


Pobre menina que por causa da asma não respirava direito. O irmão menor achou que a bombinha era um revólver de brinquedo e foi dar tiros no playground. Quando voltou, a coitadinha estava morta.

sábado, 23 de outubro de 2010

Sorteio


 

O blog O ADVERSÁRIO está sorteando um exemplar da coletânea Servidor das Letras.

Se você estiver interessado, basta deixar um comentário nessa postagem ou enviar um email para mauricio_limeira@yahoo.com.br e responder:

1 - Como conheceu o blog?

2 - Do que você mais gosta no blog?

Comentários em outras postagens não serão considerados. O resultado sairá na semana que vem. Boa sorte.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Servidor das Letras

Foi ontem a premiação do 14º Concurso Literário do Servidor Público do Estado do Rio de Janeiro. Como o evento fez parte da comemoração dos 50 anos da Fundação Ceperj, foram proferidos muitos discursos de diretores e ex-diretores da instituição, bem como de secretários do Estado, expedição de diplomas de honra ao mérito e até execução do Hino Nacional Brasileiro.
A premiação mesmo começaria quase duas horas depois do que me avisaram por telefone. Meu "O conto do filho da bela mãe" ficou com o terceiro lugar e, além da premiação em dinheiro (que ainda estou esperando), fui publicado na coletânea Servidor das Letras.
Agora, a parte boa. Fiquem atentos, pois nos próximos dias sortearei exemplares da coletânea pros leitores do blog.

Eu me esticando pra apertar a mão do presidente da Ceperj



terça-feira, 19 de outubro de 2010

Uma noite com Paloma

De uma hora para outra ela havia esquecido tudo. Quem era, como se chamava, onde morava, quantos anos tinha, em que se formara, qual era o seu salário, o que usava por baixo do vestido. E, principalmente, o que viera fazer em meu apartamento. As lágrimas ainda enlameavam o rosto que eu considerava o mais lindo de todos, mas agora não havia mais um motivo aparente para que descessem dos olhos. Ela não sabia por que estava chorando, e olhava para mim como uma criança indefesa e perdida.

“Não se lembra de nada?”, perguntei. “Não se lembra de mim?”

Ela não lembrava. Nada lhe era familiar. Caíra num mundo desconhecido e eu era o anfitrião que a estava recebendo. Um mundo novo, onde o namorado que a abandonara não existia, e eu não era apenas o amigo fiel porém incapaz de despertar qualquer tipo de interesse mais profundo.

E então me dei conta de que não precisava mais ser apenas o amigo.

“Somos namorados”, falei, segurando-lhe as mãos. “Nos amamos. Estamos namorando há anos. Você não pode ter esquecido tudo o que passamos juntos.”

Contei-lhe então todos os momentos inesquecíveis que teríamos vivido. Descrevi nosso primeiro encontro sob a chuva. Nosso primeiro beijo. Os obstáculos que enfrentamos por não contar com a aprovação de seu pai. A vez em que ela quase se afogou na praia de Copacabana e eu salvei-lhe a vida. Ela ouvia e mais assustada ficava por não lembrar. Por não conseguir se ver dentro das lembranças que eu narrava. Cheguei a ficar com pena dela. Mas não voltei atrás.

“Você precisa lembrar”, insisti. “Procure fazer um esforço, meu amor. Olhe para mim. Não reconhece o meu toque, não reconhece o meu cheiro?”

E enquanto perguntava eu ia tocando-a, segurando-lhe as mãos, abraçando-a. Procurei não dar-lhe tempo para raciocínio, falando sem parar, aumentando-lhe a confusão e abrindo caminho para o beijo que não tardou. Que boca maravilhosa. Não sei se alguém  conseguiu alguma vez descrever tão bem a realização de um sonho, e certamente não serei eu a conseguir. Em todo caso, acredite, eu estava no mais perfeito êxtase quando nossos lábios se tocaram e minha língua começou a navegar pela região até então distante e cobiçada de sua boca. Ela se deixou beijar sem, no entanto, contribuir efetivamente. Mas aos poucos foi se entregando, e logo suspirava comigo quando alcancei a pele branca do pescoço e ali fui aumentando a intensidade de meus beijos. Paralelamente apertava-lhe a cintura, os braços, e não tardou para que minha mão lhe alcançasse o seio. Ela estava ofegante. Tentara evitar que a minha falta de pudor lhe descesse a alça do vestido, mas eu não apenas conseguira desnudar-lhe o seio como agora acariciava com a palma da mão o mamilo enrijecido.

Em minutos estávamos em meu quarto. Ela estava nua, embaixo de mim, e enquanto a penetrava eu perguntava-lhe no ouvido se ela se lembrava disso. Ela gritava que sim. Depois, sem parar de entrar e sair de dentro dela, enfiava-lhe o dedo atrás e perguntava, novamente, se ela lembrava. Sim, sim, era a resposta. Mesmo sem nunca ter feito amor comigo, ela lembrava de tudo. Aquilo foi o suficiente para me convencer de que, no fundo, sempre estivemos juntos. Se não nessa, em alguma outra vida paralela onde as coisas eram como deveriam realmente ser. Quando finalmente terminamos, ela virou-se para o lado, exausta, e adormeceu. Eu fiquei acordado, enternecido, admirando-lhe o sono. Era o mais feliz dos homens.

Seria, no entanto, retirado de meu estado de felicidade pelo toque do telefone. A fim de não fazer barulho, fui atender na sala. Era Tiago, o sujeito que, além de meu amigo, também era o ex-namorado da mulher que dormia em minha cama. Parecia arrasado.

“Oi, Tiago.”

“Juliano, você sabe para onde a Paloma foi?”

Sabia, sim. Foi para as nuvens. Eu a levei.

“Não, Tiago. Aconteceu alguma coisa?”

“A gente teve uma briga. Eu terminei com ela. Ela ficou muito abalada, tô preocupado, cara. Ela pode fazer alguma besteira. Ela não te procurou?”

“Não. Mas pode deixar que eu te aviso. Um abraço, cara.”

“Valeu, amigo.”

Agora voltamos à nossa programação normal, pensei, enquanto retornava ao quarto.

Paloma continuava estirada em minha cama, bela adormecida mergulhada nua em seus sonhos. Sem que ela despertasse tomei-lhe um dos pés e beijei-o delicadamente várias vezes, em toda a sua extensão. Beijava o dorso, os dedos, a sola, e nessa situação de abuso terminei por ver aceso novamente o desejo. Segurando pelo calcanhar o tão delicado pé de minha amada, comecei a me masturbar e não parei antes de ejacular fartamente em seus dedos. Ela continuava linda, fada, santa, mesmo com a profanação de sua pele por meu sêmen. Eu a olhava e esperava que, ao acordar, Paloma permanecesse amnésica. Mas estava preparado para o caso de isso não acontecer. Meu plano B seria dizer, simplesmente, com a cara mais assustada, que ela viera até meu apartamento após terminar com Tiago e, visivelmente bêbada e chorando, me seduzira e eu não resisti. Aconteceu. Não foi antecipado e nem era culpa de ninguém. Ela talvez ficasse chocada, mas entenderia. Não havia o que fazer. O ser humano era dado a comportamentos cuja explicação muitas vezes se perdia no meio das luzes e das trevas da alma. Por que então pedir razões aos gestos da alma, se a própria alma as dispensava?

Naquele instante o telefone tocou outra vez, e voltei para a sala para atendê-lo. Era o Tiago de novo.

“Cara, tem certeza de que ela não te procurou? Ela não te ligou?”

“Não.”

“Eu tô ligando pra casa dela e ninguém atende. Tô muito preocupado. Acho que aconteceu alguma coisa.”

“Por que vocês brigaram, afinal?”

“Ela tem um problema, mas não importa. A gente precisa encontrar a Paloma.”

A gente?

“Que problema ela tem?”

“Deixa pra lá. A gente precisa encontrar.”

“Que problema ela tem?”

“Ela tem umas perturbações. Faz umas coisas estranhas. Eu falei pra ela se tratar. Pra procurar um médico. Um pai de santo. Sei lá.”

“Peraí. Me explica isso direito. O que ela faz? Pra que ela precisa de pai de santo?”

“Nada. Esquece. Se ela te procurar, me avisa.”

“Diz logo o que a Paloma tem, porra.”

Eu já estava impaciente com Tiago, quando então ouvi um barulho vindo do quarto.

“Tiago, preciso desligar. Me liga daqui a cinco minutos. Liga pro meu celular.”

“Tá legal.”

Quando estava voltando para o quarto, tive a sensação de que iria me arrepender de ter mentido para Paloma, feito amor com ela e ejaculado em seu pé. E de fato o arrependimento começou ao ver a cama vazia. Paloma não estava mais lá. De alguma forma conseguira sair do quarto, passar por mim enquanto eu falava ao telefone com seu ex-namorado e sair do apartamento, deixando a porta aberta e um absurdo e escandaloso rastro de fezes pelo chão. O rastro seguia pela escada, por onde ela certamente havia descido, nua, sabe-se lá para onde e para quê. Olhando os degraus que se estendiam para o andar inferior, pensei em deixar que ela se virasse. Em não me envolver. Em voltar para casa e limpar o chão. Mas acabei descendo também, gritando o nome dela enquanto ouvia, bem longe, os pés descalços pisando ligeiros o mármore dos degraus. Aquilo não acabaria bem. Uma mulher correndo nua e toda cagada no meio da noite era caso de polícia. Eu deveria saber que ninguém fica muito tempo no paraíso com a mulher amada. Que lá embaixo as chamas do inferno me aguardavam para encerrar da pior maneira possível os momentos mais felizes de minha vida. Eu deveria saber.

Ao chegar na portaria estava ofegante. Paloma estivera por ali e ganhara a rua, diziam as pegadas sujas de merda que ela deixara. Tomei o mesmo caminho e, na bifurcação entre um beco escuro e a avenida, imaginei que ela tivesse entrado no beco escuro. Era o que eu faria, se estivesse correndo pelado pela rua. E foi a alternativa correta. Paloma estava lá, de pé, na sombra. Imóvel e de frente para um muro, como que aguardando alguma coisa sair dali. Fui me aproximando lentamente e repetindo seu nome com suavidade para não assustá-la. Ela não se mexeu nem falou, mas deixou-me chegar perto. Estava fedendo, mas mesmo assim eu a abracei.

“Está tudo bem, Paloma. Estou aqui com você.”

Mas não estava nada bem. Quando percebi no muro as sombras projetadas de um ponto atrás de mim, me virei rapidamente para confirmar que não estávamos sozinhos. Havia dois homens na entrada do beco, sujos, mal vestidos e possivelmente criminosos. Estavam parados, mas logo caminhavam em nossa direção.

“Não disse que tinha uma mulher pelada correndo pela rua”, falou um deles. “Olha ela aí.”

“Peladinha”, concordou o outro.

Tentei argumentar. Disse aos dois que minha namorada estava doente, e que eu a estava levando para casa. Tentei apelar para a compaixão deles. Mas não adiantou. Levei uma surra dos dois e tive de assistir caído no chão enquanto Paloma era violentada. Violentada, sim. Quem visse a cena poderia até pensar que ela estava gostando, mas aquela que abria as pernas e gritava para que enfiassem tudo não era ela. Não a minha Paloma. Não era, eu sabia, a mulher da minha vida abrindo as pernas para os criminosos sujos. Não o meu amor. Quando o celular tocou de novo àquela hora, tive dificuldade em pegá-lo no bolso e atender. Mas não foi difícil imaginar quem estava do outro lado da linha.

“Oi, Tiago.”

“E aí, cara? Alguma notícia da Paloma? Ela te procurou?”

“Procurou.”

“Ela te procurou? E como ela está?”

Naquele instante, pude perceber que mais homens imundos e sem ocupação apareciam no beco. Todos rodeavam Paloma, como que esperando a vez.

“Mais ou menos”, respondi.

“Cara, eu precisava conversar com ela. Precisava dizer que apesar de tudo eu gosto dela. Mas que, com esse problema que ela tem, não dá. Não dá.”

“Ela não vai te ouvir agora.”

“Fala pra ela, cara. Você é meu amigo. Diz pra ela.”

“Vou tentar. Tchau.”

Não sei até que horas da madrugada tive de ficar olhando o aterrador e repetitivo espetáculo dos homens cercando Paloma, abaixando as calças e entrando em suas intimidades. Houve um momento em que, vencido pelo cansaço, adormeci. Meus olhos só iriam se abrir com o céu já claro, e pude então ver que os mendigos estupradores haviam ido embora e deixado minha mulher em paz. Paloma estava deitada na sarjeta, imunda, violada e inconsciente, e com o corpo cheio de dores eu fui até ela. Coloquei-a em pé. Ajudei-a a caminhar. No caminho para minha casa, passamos por uma igreja e ela pediu para ficar lá dentro. E foi nesse momento que reconheci, emocionado, a Paloma que eu amava. Era o meu amor falando de novo, o meu amor havia voltado para mim. Tratei de atender o seu pedido e, influenciado pela religiosidade do lugar, comovido por reencontrar a mulher da minha vida, pedi Paloma em casamento. Confessei que sempre a amara. Admiti o quanto sofria vendo-a nos braços de Tiago, o quanto sonhava com o dia inalcançável em que estaríamos juntos, o quanto queria sorrir quando ela sorria e o quanto queria chorar quando ela chorava. Confessei que precisava dela, como precisava da esperança para acordar todas as manhãs e acreditar que seria capaz de sobreviver a mais um dia sem ela. Precisava dela como precisava de fé, como precisava de alguma coisa que me desse sentido nessa vida tão infeliz. Enquanto falava as lágrimas desciam-me pelos olhos e eu segurava as mãos de Paloma, implorando que me amasse como esposa e prometendo fazê-la a mais feliz de todas as mulheres.

Paloma, no entanto, recusaria o meu pedido e tiraria, de dentro das minhas, as suas mãos. Antes que eu pudesse argumentar, insistir para que ela pensasse no assunto, porém, um padre veio ter conosco e, cobrindo-lhe a nudez, levou Paloma para dentro. Sozinho na igreja, atendi o celular que tocou de novo. E, de novo, era o Tiago.

“Ei, cara. Você falou com a Paloma? Deu o meu recado?”

Nesse momento me levantei de onde estava sentado e fui até a pia batismal. Largando lá dentro o celular, deixei que a voz de Tiago se afogasse na água benta e fui para casa chorar minhas mágoas.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Lembrete

Ah, é. Esqueci de te avisar, amor. Além de ter um metro e noventa e oito de altura, ser moreno de olhos verdes, másculo, viril e bem dotado, além de saber cozinhar, de gostar de comédia romântica e de poesia, de ser paciente e de não me importar em discutir a relação nem em acompanhar você no shopping, além de não olhar para as suas amigas e de ser carinhoso, atencioso e de gostar de criança, e de ser diretor de uma agência de publicidade e herdeiro de um magnata, eu queria dizer que sou um psicopata canibal. Mas é só por isso que você está amarrada e amordaçada e eu estou cortando a sua perna com um serrote, amor.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Volta

Parou a chuva. Saí com meus pensamentos turvos para uma rua, para uma noite, que a todo instante me recomendava Volta. Volta para casa. Mas eu saí surdo, e ao olhar para trás não vi minha casa, e também não vi minha casa quando me pus a vasculhar pelos becos da memória. Eu não tinha casa, eu não morava, eu não sabia o que “lar” queria dizer. Minha vida era um eterno tropeçar, cair, levantar e acumular hematomas e pequenas e grandes dores ao redor dos ossos. Só isso. Eu sabia e era impaciente e avançava. Para o nada, para o ninguém, para o nunca. Compreende o que digo? Ou acha que não passa de conversa de bêbado, drogado, infeliz e mal amado, procurando explicação para esse mal estar que já necrosou todo o peito e agora se espalha para o resto do corpo. Deixei a cidade. Me escondi na floresta, passei fome, adoeci e enquanto sentia o musgo se formar por cima da pele encontrei a lua, parada no céu ainda à espera de um dia ser habitada pelo homem. E olhando a lua suspirei, por saber que não estaria aqui quando esse dia chegasse.

sábado, 9 de outubro de 2010

Chato até o fim

Seguia pela rua escura o homem muito chato quando virou a esquina da casa assombrada.

Na curiosidade, o homem muito chato entrou. Nunca mais saiu.

Hoje, fica ligando a cobrar para a esposa. Do além.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O professor de literatura

 “Para escrever uma história de horror”, o orientador explicava à aluna, “você deve em primeiro lugar conhecer o medo. Sentir o medo. Saber onde ele se encontra aí dentro, para então saber onde e como localizá-lo. E então poder transmiti-lo ao leitor.”

Enquanto explicava, o orientador ia olhando fixamente nos olhos da aluna. De modo tranquilo e insistente. Sem qualquer sinal de constrangimento. Ao pronunciar “aí dentro”, porém, seus olhos desceram até o decote e por ali ficaram. Ela percebeu, e fingiu que arfava. Com isso, mais estufou os seios aos olhos dele. Ele também percebeu e, sem qualquer demonstração de surpresa, continuou olhando.  Depois voltou-se novamente para ela.

“A maneira como você transmite a emoção é fundamental”, ele disse. “Não jogue tudo na cara do leitor de uma vez. Mostre um pouco aqui. Esconda ali. Sutilmente. Envolva-o primeiro. Depois é que você vai se deixando revelar.”

Como você está fazendo comigo, pensou a aluna. Exatamente assim.

O orientador era feio. Velho. Tinha idade para ser pai dela. Mas a aluna ficava nervosa sempre que estava com ele como estavam agora. Próximos demais. E ele fazia questão de ficar ainda mais próximo. Exalando perfume caro e hálito de cigarro. Usando a voz grave e rouca para jogar charme.

“Se você souber usar os artifícios que a literatura lhe dá, terá o leitor na sua mão. Poderá fazer com ele o que quiser. Ir aonde a sua imaginação desejar, que ele irá junto.”

Tinha fama de pegador. A aluna já ouvira os boatos sobre ele na faculdade. E agora, ambos sabiam, ela estava prestes a ser a próxima vítima.

“Se você puder desviar a atenção do leitor, faça. Deixe-o pensar que está lendo outra coisa. Não uma história de terror. Desenvolva os personagens. Conte um episódio engraçado, ou triste, ou erótico, mas não deixe de ser convincente. O espectador tem que gostar, ou do personagem ou da trama, e não perceber que você está apenas preparando o terreno para o bote.”

Nesse instante ele botou a mão sobre a perna dela.

“A melhor história é aquela que não dá aquilo que o leitor quer. Ou dá, mas não da forma que ele espera. Se o leitor pega uma história de terror para ler, ele vai estar esperando o terror. Medo. Tensão. Susto. Só que você dá outra coisa. Você faz ele baixar a guarda. E então você o aterroriza. Parece fácil. Mas não tem nada de fácil nisso. É preciso muita capacidade de manipulação. A maioria não tem.”

Ele agora acariciava abertamente a sua coxa, por cima do vestido. Com certeza havia percebido que ela tremia.

“Tenho uns livros interessantes em casa que você ia gostar de ler. Você vai entender bem como o autor manipula o leitor e o faz baixar a guarda para o que está por vir. Venha me visitar hoje. Você vem?”

“Vou.”

Às oito horas da noite ela estava saindo da aula de Literatura Comparada rumo à residência do orientador. Mal conseguira prestar atenção à aula. Ansiosa. Ao atravessar uma rua, porém, passou sem saber por um demônio perdido nas ruas. Uma criatura dessas que ninguém vê, mas que está sempre lá. Que, quando cisma com alguém, torna-se encosto, gruda-lhe nas costas e se delicia com o estado de nervos em que deixa a vítima. Um ser incômodo. Pois foi por uma criatura dessas que a aluna teve a infelicidade de passar.

Sentindo o cheiro de fêmea que emanava do meio das pernas da aluna, o demônio resolveu seguir-lhe os passos. Conhecia as mulheres. Sabia que era naquele estado, quando estavam inquietas e cheiravam daquele jeito, que ficavam mais frágeis, mais suscetíveis aos seus avanços. Ficavam atentadas.

E também ele ficava inquieto com o cheiro. Afoito como um cachorro, o demônio ia circulando em volta da aluna e cheirando-lhe as partes, quase metendo-lhe as narinas por debaixo do vestido. Se não estivesse tão excitada com o encontro com o orientador, ela teria percebido a presença. Teria sentido o calor da respiração do estranho aquecendo-lhe dentro das vestes. Teria medo, então, e fugiria. Mas nessas horas a capacidade de observação e raciocínio diminui, a sensibilidade chega às raias da dor e da vertigem, e mesmo o inimigo declarado torna-se irresistível objeto de desejo. Assim estava a aluna quando chegou ao edifício do orientador.

Na subida do elevador o demônio ia deixando-a tonta enquanto chupava-lhe o suco nas roupas íntimas. Foi cambaleando que ela chegou ao 13º andar e tocou a campainha.

Quando o orientador abriu a porta, porém, o demônio não gostou. Ao aspirar o ar que vinha do interior do apartamento, percebeu que tinha de ir embora. Que já havia um dono para o local, e que esse dono era muito maior e pior do que ele. Resmungando, o demoniozinho safado sequer esperou o elevador. Um último olhar para a aluna, e então desceu correndo pelas escadas e nunca mais chegou perto daquele edifício.

“Entra”, o orientador convidou.

“Oi”, a aluna estava nervosa quando entrou. Segurava uma das mãos na outra, e não encarava o orientador que afastara-se para ela entrar. Quando tentava sorrir, os lábios tremiam. Ela toda tremia.

“Quer beber alguma coisa?”

Recusou, encabulada, ainda que a boca estivesse seca. Lutava com todas as forças para parecer natural e espontânea, e tudo o que conseguia era agir como uma adolescente tímida. Na face, as bochechas queimando indicavam que ruborizava. Precisava falar. Ou ele acabaria expulsando-a do apartamento. Caminhou até a estante que ocupava toda uma parede da sala onde estavam.

“São seus todos esses livros?”

Não, idiota. São todos roubados. Antes ficasse calada, pensou. O orientador ia acabar perdendo o interesse que manifestara nela. Na certa ia mostrar o tal livro que prometera na faculdade, por pura educação, depois inventaria que precisava trabalhar e lhe mostraria a porta de saída. A noite seria um fiasco. Melhor ir embora logo e acabar de uma vez com aquela humilhação.

“Tenho mais no outro quarto, que uso como escritório”, ele falou, pacientemente. “O de que lhe falei está aqui.”

Segurando-lhe a cintura ele a trouxe até a ponta da estante. Posicionou-se às suas costas, enquanto ela olhava o livro sem conseguir sequer enxergar o título. Foi folheando o volume rapidamente até que as mãos dele chegaram a seu corpo. Uma na cintura, a outra no ombro. Apertando levemente, e puxando-a para trás. Trazendo-a ao encontro dele. Quando encostou de vez, a aluna duvidou que fosse conseguir ficar de pé. Ele já estava excitado. Ela sentiu. Movendo-se sempre suavemente, o orientador afastou-lhe os cabelos do pescoço e começou a beijar-lhe bem ali. Ela pensou que fosse desfalecer nos braços dele, e deixou a cabeça cair para trás, encontrando o ombro que a esperava. Sentiu o hálito de cigarro misturado com bebida. A língua serpenteando-lhe pelo pescoço. E logo veio a mão direita dele, sem cerimônia, apertar-lhe o seio. Nesse instante ela saiu do silêncio, e deixou escapar um gemido curto, de susto.

Ele então puxou-lhe o rosto e a beijou na boca. Demoradamente, em pé, junto à estante. Ela ainda segurava o livro em uma das mãos. Estavam agora de frente um para o outro, e a mão inquieta dele descia-lhe pelas costas e afastava o vestido. Ia apertando o que encontrava, procurando com o dedo por baixo dos tecidos, até encontrar o que queria. Já não havia suavidade. Ele enfiava o dedo nela com força, respirava fundo, e enfim começou a sussurrar em seu ouvido.

“Bruxa. Você é uma bruxa. Confesse.”

Ela não entendeu, mas estava tão excitada que faria o que ele mandasse. Mal conseguia falar, a excitação escorria pelas pernas e ela limitava-se a gemer concordando com tudo. E a mover os quadris junto com o dedo dele. Quando ele então tirou o dedo e a fez ajoelhar-se, ela obedeceu também. Viu quando ele desafivelou o cinto e abriu a calça. Viu o que havia ali dentro. Fez o que ele queria.

“Bruxa. Rameira. Vadia.”

Ele segurava-lhe pela cabeça. Forçava a entrada em sua boca. Obrigava-a a receber todo ele. Antes de terminar ordenou que ficasse de pé, e levou-a para o quarto. Atirou-a na cama, caindo já sem roupas por cima dela. A penetração foi rápida, barulhenta e dolorosa. O tempo todo ele a xingava, ofendia, em nada lembrando a elegância e a mansidão de antes.

Deu no ombro a primeira mordida. Ela reclamou. Pele muito branca, deixou marca. Ele não ouvia. Rosnava. Ela já estava vendo coisas, podia jurar que havia mais alguém na cama com eles. Não teve, no entanto, tempo para certificar-se. Bruscamente ele a virou de bruços e a penetrou atrás. Ela gritou. Ele puxou-lhe o cabelo, mordeu de novo, e de novo, deixou mais marcas, estava possesso.

“Vai arder no fogo do inferno.”

Quando ele começou a gozar, gritou como se estivesse a morrer. Ela gritou também. O orientador caiu por cima da aluna, e ela então emitiu um suspiro.

“Não acabou ainda. Vagabunda. Estamos só começando.”

Havia uma corda embaixo da cama. Bastou esticar o braço para pegá-la. Ela tentou reclamar, mas viu que o membro por que havia sido penetrada continuava duro, e a vontade de satisfazê-lo falou mais alto. Acabou deixando-se amarrar, as duas mãos e os dois pés, às pontas da cama. Quando achou que seria novamente penetrada, no entanto, o que lhe veio foi um violento tapa no rosto. Depois outro. Montado em cima dela, o orientador gargalhava e falava coisas que ela já não entendia. Falava em punição e castigo. Xingava-a de todos os nomes, como se a odiasse. A aluna chorava, pedia para parar, que a desamarrasse. Acabou sendo amordaçada. Depois de apanhar mais e mais, o orientador enfiou o rosto alucinado num dos seios e mordeu. Com toda força. A dor e o horror quase a fizeram desmaiar, principalmente quando ele ergueu a cabeça à sua frente com a boca cheia de sangue e cuspiu o mamilo que arrancara. A aluna esperneou e gritou um grito abafado. Naquele instante teve certeza de que iria morrer. Ele não permitiria que saísse com vida daquele apartamento. Gritou com toda força, lutando contra as cordas, até tombar exausta.

“Fica acordada”, ele disse, limpando com as costas da mão o sangue na boca. “Tem mais pra você.”

Levantando-se de cima dela, o orientador saiu do quarto. No mais profundo e completo pânico, a aluna procurou algo que a libertasse das cordas, tentou quebrar a cama, tentou fazer barulho, tudo em vão. Logo ele estava de volta. Trazia algo na mão que ela, a vista embaçada de suor e choro, só foi reconhecer quando ele chegou mais perto e destampou. Era álcool. Gargalhando, ele virou o frasco sobre a vagina dela e derramou ali todo o conteúdo. Ela sentiu arder tanto a pele já irritada que mentalmente pediu que morresse. Pediu que tudo acabasse ali mesmo. De repente imagens de seus pais, de seus amigos e de todos aqueles que conhecia explodiram na sua mente, e ela soube que nunca mais veria nenhum deles. Não teria, porém, mais tempo para pensar. O orientador trazia outra coisa na mão, que estava agora abrindo. Era uma caixa de fósforos. Ele estava eufórico quando riscou o primeiro palito e jogou-o, aceso, sobre o álcool derramado.

Estava em chamas. A vagina dela estava em chamas. A aluna não conseguiu olhar, estava enlouquecendo de dor. Rasgando-se de dor. Diante da cama o orientador gritava algum tipo de oração diabólica, e a visão dele de braços erguidos, as chamas e o enorme vulto a tudo acompanhando foi a última visão que a aluna teria. Vitimada por uma parada cardíaca, ela enfim parou de debater-se e morreu. O orientador, em êxtase, avançaria então para cima dela com uma enorme faca e retirando, desajeitadamente, pedaços de sua carne, terminaria por devorá-la.

*

Passados oito meses do desaparecimento da aluna, seus pais não perderam a esperança de encontrá-la e insistem em sua procura. Débora Gonçalves Lessa tinha 23 anos quando foi vista pela última vez saindo da faculdade. Morava com os pais e o irmão num apartamento no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Estudava literatura e pretendia ser professora quando se formasse. Era uma jovem tímida, carinhosa e querida. Não era dada a excessos, não fumava, bebia pouco. Na faculdade os colegas fizeram-lhe uma homenagem. Todos os professores participaram.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Concurso Literário

Todo ano a Fundação Ceperj promove, aqui no Rio, o seu Concurso Literário para o Servidor Público do Estado. Neste ano foram 647 trabalhos (340 poesias e 307 contos) inscritos, e os vencedores, além da premiação em dinheiro, farão parte de uma coletânea publicada pela fundação.
No início dessa semana recebi um telefonema deles, me parabenizando por minha obra "O conto do filho da bela mãe" ter tirado o terceiro lugar. Se não for trote, dia 21 é a premiação. Vamos aguardar.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Veredas



 

Veredas é uma interessante revista eletrônica editada por Ana Mello e Marcelo Spalding. Dedica-se a publicar minicontos e micronarrativas como este "Fatal", de Maria Regina Caetano Soares, que reproduzo abaixo.

Era para ser um final de tarde como outro qualquer na vida de Dimitrius Alexandre. Caminhou rápido sobre a ponte recém inaugurada na cidade em que nasceu, dirigiu-se à parte mais alta e sumiu.
Bonito e eternamente vaidoso, vestia uma roupa linda de morrer.



Em sua edição de outubro, a Veredas publicou meu miniconto "Reconciliação" (já postado aqui).

Quem quiser conferir, o endereço da Veredas é http://www.veredas.art.br/. Boa leitura.

domingo, 3 de outubro de 2010

TerrorZine



TerrorZine é um fanzine eletrônico organizado por Ademir Pascale e Elenir Alves, voltado à publicação de minicontos de horror, a entrevistas com autores nacionais e a dicas literárias dos gêneros horror e fantástico. A edição atual, de nº 21, traz minicontos de 19 autores, e um desses sou eu, com o miniconto "Identidade", já postado nesse blog.

Quem desejar conferir, a TerrorZine é distribuída gratuitamente via download, no endereço www.divulgalivros.org/terrorzine21.pdf.

sábado, 2 de outubro de 2010

Eleições (2)

Dizem que, na eleição para prefeito em 2008, um homem teria entrado numa das salas de uma escola na Zona Sul do Rio de Janeiro para votar. Após passar pelas formalidades necessárias, dirigiu-se à urna e lá ficou.

Quando os mesários enfim perceberam que ele se demorava mais do que o normal, se deram conta também de que o homem em pé diante da urna estava falando sozinho. Sussurrava frases incompreensíveis num idioma que parecia latim, não parando quando lhe avisaram que deveria sair.

Mas a atenção das pessoas na sala seria desviada do homem quando uma mulher de cinquenta e cinco anos, que esperava na fila a sua vez de ir para a urna, começou a chorar sem razão e a dizer que “a morte está aqui, a morte está aqui. Alguém me ajude.”

Reunidos todos ao redor da mulher para acalmá-la, ninguém percebeu a saída do homem junto à urna, que deixou a sala sem ser visto. Quando o próximo eleitor se dirigiu para votar, soltou um grito de susto. No monitor da máquina, a imagem da cédula estava congelada no número 666, independente de qualquer dígito que se utilizasse.

Chamou-se o técnico, mas nem ele resolveu o problema. A urna teve de ser desligada, e a seção eleitoral, fechada.

Mas o dia não terminaria aí. Um dos mesários, rapaz de vinte e seis anos e funcionário de um banco, tomado de um inesperado cansaço, pediu para sentar-se. Segundo ele, de repente faltara-lhe fôlego e precisava se apoiar em algo. Sentaram-no num sofá na diretoria da escola, e lá ele adormeceu.

Apenas no fim do dia, encerrada a votação, lembraram dele. Foram até a diretoria e tentaram acordá-lo. Em vão. O mesário havia morrido.

Houve quem culpasse o homem estranho que falava em latim. Houve quem culpasse a mulher que chorava. Houve até quem culpasse a urna, que estaria assombrada. O fato é que justamente nessa escola é que eu vou votar amanhã, e agora não consigo dormir direito pensando nisso. Não basta o terror de não ter em quem votar, ainda precisamos driblar a morte para cumprir o nosso dever de cidadão.