sábado, 20 de novembro de 2010

A criança (II)

“Mãe.”

“O que foi, Yuri?”

Yuri era o filho mais velho. O relógio na cabeceira da cama marcava 3:15 da madrugada.

“Não consigo dormir. Meu irmão não deixa.”

“Seu irmão está dormindo, Yuri. Nem chorando ele está.”

“O que foi?”, Santiago resmungou, acordando. “Quem está chorando?”

“Nada”, a esposa falou. “Fica dormindo, vou levar o Yuri pro quarto.”

“Não quero ir pra lá. Tenho medo dele.”

“Medo do seu irmão? Que maluquice é essa?”

Santiago então despertou de vez. A palavra “medo”, saída da boca do filho, acendeu uma luz amarela no semáforo de seus temores.

“Eu levo ele.”

Pegando o filho nos braços, Santiago foi sussurrando enquanto seguiam para o quarto.

“O Yago é seu irmãozinho. Não tem por que ter medo dele. Ele vai ser o seu melhor amigo quando crescer mais. Vocês vão brincar muito juntos.”

“Ele não dorme.”

“Que história é essa.”

“Ele não dorme. Ele não fecha o olho nunca. Eu vi.”

Os dois chegaram no quarto das crianças. Santiago acendeu a luz e foi ver o bebê. Yago estava imóvel, os olhos abertos sem olhar para lugar nenhum.

“Yago?”, Santiago colocou no chão o filho maior e pegou o bebê. “Yago, você está bem?”

Assustado, Yuri correu para a porta e ficou olhando de lá. Santiago agitou levemente a criança, que enfim piscou os olhos e chorou.

“Pronto, pronto”, Santiago procurou acalmar o bebê. “Passou, meu filho, passou. É o papai.”

Quando Yago parou de chorar, Santiago recolocou-o no berço e ficou acariciando-lhe a barriga até fazê-lo dormir.

“Venha para sua cama, Yuri. Seu irmão está dormindo.”

“Não está.”

“Pare com isso. Você não tem por que ter medo dele. É só uma criança. Vem cá. Vem.”

O menino, ainda que temeroso, veio ficar do lado do pai.

“Olha. Ele está dormindo. Vê? Nenhum problema. Se ele acordar de novo, você me chama. Combinado?”

Yuri foi se deitar. Estava morrendo de medo do irmão, mas não falou nada.

*


Desde o dia anterior Santiago não trabalhava no livro que estava elaborando para a igreja. Temia escrever uma coisa e ler outra, certo de que o problema estava em sua cabeça. Passou orando a manhã de sábado e pedindo a Deus que lhe desse paz e serenidade para realizar seus afazeres, e que afastasse qualquer presença obscura que lhe estivesse rondando, e a seus filhos.

Num momento a sós com a esposa, começou a falar.

“Você sabia que o Yuri está com medo do irmão?”

Estavam na cozinha. A esposa preparava o almoço. Estavam esperando um casal de amigos da igreja.

“Sabia”, ela respondeu. “Isso é ciúme. Ele tem ciúme do Yago. Pensa que vai perder a atenção dos pais. Isso é normal.”

“E o Yago está bem? Você notou alguma coisa diferente nele?”

“Diferente? No Yago? Não. O quê, por exemplo?”

“Nada.”

Santiago já não sabia o que dizer. Bastava o Pastor para duvidar de sua sanidade. Durante o almoço com as visitas, falou pouco e a todo instante ia ver o filho mais novo no berço. Yuri, o mais velho, ia junto todas as vezes.

“O que ele tem, papai?”

“Nada, Yuri. Seu irmão é novinho, só isso. É mais frágil. Precisa de mais cuidados.”

“Eu também fui assim?”

“Foi. Igualzinho.”

“Eu também ficava sem dormir com o olho aberto?”

“Não.”

“Mamãe disse que você cuidava de mim quando eu tinha a idade do Yago. E que agora não tem tempo, por causa do trabalho. Vai ver é por isso que ele fica de olho aberto.”

“É. Pode ser. Mas não fique pensando nisso. Se alguma coisa acontecer de novo, me chame. Ou reze para Jesus. Você ama Jesus, não ama?”

“Amo.”

“Pronto. Isso é suficiente. Se você ama Jesus de verdade, nada pode te acontecer de ruim. Você vai estar protegido. Agora vamos voltar para a sala, senão nossos amigos vão achar que não são bem vindos.”

Tomando da mão do filho mais velho, Santiago saiu do quarto. Não percebeu, no entanto, que Yago acabara de abrir os olhos.

*


Às cinco horas da tarde as visitas haviam ido embora. Cansada, a esposa de Santiago foi deitar-se, enquanto ele ficou na sala. Colocando sobre a mesa uma folha em branco de papel, Santiago rabiscou frases soltas como quem derrama ração na vasilha e espera o cachorro vir comer. Escreveu “amor”, “Yago”, “Jesus”, “família”, e depois fechou os olhos. Rezou para que, quando os abrisse, fossem exatamente essas as palavras que iria encontrar.

Então ouviu o grito vindo do quarto das crianças. Era a voz de Yuri, e Santiago, deixando para trás a folha sobre a mesa, levantou-se correndo. Ao entrar no quarto foi deparar-se com o filho mais velho, descontrolado, gritando como se as chamas do inferno lhe subissem pelas perninhas curtas, com o corpo curvado para dentro do berço e as duas mãos tentando estrangular o bebê que era seu irmão.

A cena apavorante conseguiria por alguns segundos congelar os movimentos de um aterrorizado Santiago. Mas não tardou para que ele avançasse para dentro do quarto, libertando Yago dos braços do irmão e atirando para longe o filho mais velho. Yuri cairia no chão gritando, contorcendo-se como se ardesse por dentro. Santiago, com um filho inconsciente nos braços e outro gritando no chão, chamou diversas vezes pela esposa. Não era possível que ela não estivesse ouvindo. Ao mesmo tempo o telefone começara a tocar insistentemente, como que aderindo a um complô contra a sanidade de Santiago. Gritando pela esposa e, agora, também por Jesus, o desesperado pai tentou dividir-se entre reanimar o filho mais novo e acalmar o mais velho. Estava, no entanto, fracassando em ambas as tentativas.

No outro quarto, a esposa de Santiago apenas dormia.

Deixando Yuri debatendo-se no chão, Santiago foi até o telefone com o bebê nos braços. Precisava chamar uma ambulância. O filho mais novo não estava respondendo, nem respirando. Ao tirar do gancho o fone que ainda tocava, ouviu a voz do Pastor.

“Santiago?”, disse ele. “Estava tentando ligar para você.”

“Me ajude”, Santiago gritou. “Os meus filhos. Pelo amor de Deus. Os meus filhos. Yago não está respirando. Pelo amor de Deus.”

“Calma, o que está acontecendo? Onde está a sua esposa?”

“Chame um médico. Yago precisa de um médico. Yago está morrendo. Pelo amor de Deus. Ele não está respirando.”

“Fique calmo, estou indo para aí. Estou levando um médico, não se desespere. Já estou chegando, Santiago, tenha calma.”

“Pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus.”
   
*


Ninguém, no entanto, conseguiria chegar a tempo. A fatalidade, quando vem, não respeita portas fechadas, grades, preces. Quando quer, vem e estraga o bem mais sólido e duradouro. Encontra brechas. Derruba represas. Foi assim com Santiago. No momento em que o Pastor entrou em sua casa, trazendo a ambulância pedida, o bebê já estava morto. Não resistira e sufocara nas mãos do próprio irmão. Yuri, por sua vez, após a crise que o levara ao fratricídio, perdera os sentidos e só no hospital iria recuperá-los. E no hospital permaneceu, sob tratamento, enquanto Yago era posto num pequeno caixão e depositado numa cova.

Durante a cerimônia, Santiago chamou o Pastor para um canto. Contou-lhe toda a história. Falou do medo que Yuri sentia do irmão, e do ciúme que ele achava estar por trás desse medo. Falou do temeroso sentimento vivido, na noite em que os olhos abertos de Yago plantaram dúvidas no meio de todas as explicações que ele pudesse formular sobre o que acontecia dentro daquele quarto que era mais frio do que o restante da casa. Santiago contou tudo, até o momento em que tirou um filho das mãos assassinas do outro. O Pastor ouviu calado.

“E os papéis, Santiago”, ele então perguntou. “Não houve mais mensagens?”

“Eu estava esperando que o senhor perguntasse.”

Santiago então tirou uma folha de papel dobrada no bolso.

“Imediatamente antes da crise de Yuri começar, ontem, minha esposa foi dormir e eu fiquei na sala. Sentado à mesa, peguei essa folha de papel e escrevi Amor, Yago, Jesus, Família."

Santiago então olhou nos olhos do Pastor. Controlava-se para não chorar.

“E então, Santiago?”, o Pastou quis saber. “O que havia no papel?”

As mãos dele tremiam, quando desdobrou a folha e mostrou o conteúdo. No papel estava escrito, com a mesma letra de Santiago: “Agora eu quero o outro filho”.



 (Continua.)

5 comentários:

  1. Muito legal esse blog...e os textos são fantásticos...abraços...www.cidade-liquida.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. Que bom que gostou, RC, muito obrigado pela visita.

    Acabei de botar um link pro Cidade Líquida na lista de Recomendados.

    Abração, sucesso,
    Maurício

    ResponderExcluir
  3. Você tem o dom. Prende o leitor a seu texto bem escrito e pleno de suspense. Obrigada por me encaminhar suas mensagens. Boa sorte

    ResponderExcluir
  4. Você também tem, Angela. Gostei muito do que vi em seu blog, o Microargumentos (http://microargumentos.blogspot.com). Tanto que coloquei o link entre os Recomendados.

    Obrigado pela visita. Sucesso para nós.

    Abração,
    Maurício

    ResponderExcluir
  5. Gostei, gostei. A parte em que o Yago abre os olhos quando o pai sai do quarto, é muito legal. Parabéns.
    Eu tenho uma sugestão, sei que já está escrito e tal, mas conta como sugestão pelo menos:
    - seria bacana se não desse pra saber se essa coisa do Yago é real ou se é só coisa da cabeça do irmão
    - não ficaria mais verídico se o Santiago fechasse os olhos antes de escrever?

    Enfim... já tá escrito, já era, mas ficou bacana :-)

    ResponderExcluir